segunda-feira, 19 de maio de 2014

"Ocê gósdevinho?" Degustação de Vinho em Minas e Defenestração - Luís Fernando Veríssimo


Na disciplina Gramática Aplicada na Literatura Portuguesa foi demonstrado as diversas maneiras utilizadas para formar palavras,e a parte da análise gramatical que estuda este conteúdo:a Morfologia.

Abaixo seguem dois textos que demonstram palavras formadas por aglutinação:"gósdevinho", supressão:"ocê" e derivação sufixal:"gostim",entre outros como a palavra "defenestrar"(defenestração é o ato de atirar algo por uma janela. Refere-se, contudo, mais especificamente ao ato de atirar pessoas de uma janela com a intenção de as assassinar ou ao caso de suicídio. O termo provém da palavra latina para janela, fenestra.) o que nos permite compreender que as palavras não são apenas aglomerados de letras,e que mesmo sem conhecer seu significado ela carrega uma história,e este significado nunca é arbitrário.


"Ocê gósdevinho?" Degustação de Vinho em Minas

- Hummm... 

- Hummm...

- Eca!!!

- Eca?! Quem falou Eca? 

- Fui eu, sô! O senhor num acha que esse vinho tá com um gostim estranho?

- Que é isso?! Ele lembra frutas secas adamascadas, com leve toque de  trufas brancas, revelando um retrogosto persistente, mas sutil, que enevoa as papilas de lembranças tropicais atávicas... 

- Putaquepariu sô! E o senhor cheirou isso tudo aí no copo ?!

- Claro! Sou um enólogo laureado. E o senhor? 

- Cebesta, eu não! Sou isso não senhor !! Mas que isso aqui tá me cheirando iguarzinho à minha egüinha Gertrudes depois da chuva, lá isso tá!

- Ai, que heresia! Valei-me São Mouton Rothschild! 

- O senhor me desculpe, mas eu vi o senhor sacudindo o copo e enfiando o narigão lá dentro. O senhor tá gripado, é ?

- Não, meu amigo, são técnicas internacionais de degustação entende? Caso queira, posso ser seu mestre na arte enológica. O senhor aprenderá como segurar a garrafa, sacar a rolha, escolher a taça, deitar o vinho e, então... 

- E intão moiá o biscoito, né? Tô fora, seu frutinha adamascada! 

- O querido não entendeu. O que eu quero é introduzi-lo no... 

- Mais num vai introduzi mais é nunca! Desafasta, coisa ruim! 

- Calma! O senhor precisa conhecer nosso grupo de degustação. Hoje, por exemplo, vamos apreciar uns franceses jovens... 

- Hã-hã... Eu sabia que tinha francês nessa história lazarenta... 

- O senhor poderia começar com um Beaujolais! 

- Num beijo lê, nem beijo lá! Eu sô é home, safardana! 

- Então, que tal um mais encorpado? 

- Óia lá, ocê tá brincano com fogo... 

- Ou, então, um suave fresco! 

- Seu moço, tome tento, que a minha mão já tá coçando de vontade de meter um tapa na sua cara desavergonhada! 

- Já sei: iniciemos com um brut, curto e duro. O senhor vai gostar! 

- Num vô não, fio de um cão! Mas num vô, messs! Num é questão de tamanho e firmeza, não, seu fióte de brabuleta. Meu negócio é outro, qui inté rima com brabuleta... 

- Então, vejamos, que tal um aveludado e escorregadio? 

- E que tal a mão no pédovido, hein, seu fióte de Belzebu? 

- Pra que esse nervosismo todo? Já sei, o senhor prefere um duro e macio, acertei? 

- Eu é qui vô acertá um tapão nas suas venta, cão sarnento! Engulidô de rôia! 

- Mole e redondo, com bouquet forte? 

- Agora, ocê pulô o corguim! E é um... e é dois... e é treis! Num corre, não, fiodaputa! Vorta aqui que eu te arrebento, sua bicha fedorenta!... 

Luiz Fernando Veríssimo


DEFENESTRAÇÃO (Luís Fernando Veríssimo Veríssimo)

 Pretendo, postando esta crônica de Luís Fernando Veríssimo, ressaltar o quanto de profético pode haver numa obra de ficção, que muitas vezes é superada pela realidade. Afinal  o autor não poderia supor o quanto seria farta e lamentavelmente usado, como nestes dias, três décadas após a edição desta crônica,  o verbo DEFENESTRAR.

     "Certas palavras tem o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A falácia Amazônica . A misteriosa falácia Negra.

     Hermeneutas deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.
     -Os hermeneutas estão chegando!
     -Lh, agora é que ninguém vai entender mais nada...
     Os hemeneutas ocupariam a cidade e paralizariam todas as atividades produtivas com seus enígmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisa recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
     -Alô...
     - O que é que você quer dizer com isso?...

     Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
     - Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.

     Plúmbeo devia ser o barulho que o corpo faz ao cair na água

     Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.
     A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um som lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
     -Defenestras?
     A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas...Ah, algumas defenestravam.
     Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria assim defenestradores profissionais.
     Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo tê-la usado uma ou outra vez, como em:
     -Aquele é um defenestrado.
     Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exata.

     Um dia finalmente procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês defenestration. Substantivo feminino, ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal,não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
     Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
     -Les defenestrations. Devem ser proibidas.
     -Sim, monsieur le ministre.
     -São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
     -Sim, monsieur le ministre.
     -Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: interdit de defenestrer. Os transgressores serão multados.. Os reincidentes serão presos.
     Na bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
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(Luís Fernando Veríssimo. O Analista de Bagé. 6ª ed. Porto Alegre.L&PM ed. 1981. p. 29-31)


Érick-Silvestre-Thaís

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